domingo, 28 de março de 2010

Discurso para a formatura da Turma Arquitetos 2010 - UFPA

Outro dia cheguei para o meu sagrado futebol das tardes de sábado e encontrei um grupo de amigos discutindo, para minha surpresa... Arquitetura! É verdade. Uma turma de “peladeiros”, integrada por médicos, advogados, militares, operários, empresários, engenheiros, funcionários públicos, enfim, indivíduos de diferentes formações em acalorada polêmica sobre determinada obra pública da nossa cidade. Entrei, então, na conversa e, inocentemente, achei que iria, com meus argumentos de arquiteto, colocar tudo no devido lugar e criar um senso comum sobre a matéria. Crasso engano. Minha opinião foi apenas mais uma. Esclareci alguns aspectos da coisa, mas pouco interferi nos juízos, sobretudo qualitativos, que aquela gente fazia da edificação ali tratada.

A discussão só acabou quando começamos a jogar. Mas eu, debaixo da trave, devidamente paramentado de goleiro, ainda imerso na polêmica, pus-me a refletir sobre a questão em si. Dei-me conta de que já havia presenciado outras situações semelhantes àquela. Debates sobre arquitetura em círculos de não arquitetos. Pessoas sem formação sistemática na área manifestando, de maneira convicta, pareceres sobre prédios, os achando feios ou bonitos, imponentes ou discretos, expressando razões para sentirem-se bem ou mal dentro ou diante deles, por exemplo.

E a bola rolando, e eu pensando no assunto. Até que, distraído que estava, tomei um gol, uma enorme bronca do time todo, e comecei a prestar atenção no jogo.

Essa historiazinha, divertida para alguns, tola para outros, e confesso, aqui ligeiramente dramatizada, é apenas o mote, a fim de chamarmos a atenção para um fato de grande seriedade e profundidade: A universalidade da arquitetura, e sua obrigatória presença na vida de todos nós, independentemente de nossas vontades ou mesmo consciências.

Sabemos que essa afirmação é forte, presunçosa talvez, já que eleva a arquitetura à condição de coisa onipresente frente à humanidade. Compreendemos, também, que pelo natural clima de emoção característico das solenidades de formatura, alguns discursos ocasionais tendam a supervalorizar as profissões nas quais os colandos nesses momentos se graduam. Tentaremos, entretanto, respeitando a natureza deste evento, demonstrar a admissibilidade do que dizemos, afastando o referido sentido de exagerada glorificação da arquitetura.

Para se comprovar uma tese é necessário, dentre outras coisas, evidenciar a aceitabilidade das principais razões que a sustentam. Apresentemos, então, nesse sentido, algumas justificativas conceituais que nos conduzam a admitir ser a arquitetura essa coisa de interesse tão comum, coletivo, diante da qual dificilmente ficamos indiferentes. Podemos, por exemplo, em raciocínio simplificado, afirmar que:

- ficamos sensibilizados diante da arquitetura porque ela fisicamente expressa importantes valores de nossa cultura;

- estamos interessados em arquitetura, pois ela manifesta materialmente a condição social, política e econômica do nosso povo;

- consideramos importante a arquitetura porquanto ela anuncia o estágio de desenvolvimento tecnológico da nossa civilização;

- estamos vinculados à arquitetura, enfim, porque ela denota a presença humana sobre a terra.

Embora escolhidas por suas abrangências dentre múltiplos conceitos sobre o assunto, essas assertivas, assim enunciadas de maneira genérica, são razoáveis, plausíveis. Entretanto, investigadas mais a fundo, talvez não sejam suficientes para explicar o tipo de envolvimento coletivo com a arquitetura que aqui defendemos existir. Embora claras, as citadas proposições estão fundamentadas em aspectos cujas plenas compreensões não são massificadas. Apenas os estudiosos do tema possuem a exata dimensão do significado daqueles termos para o contexto arquitetônico. Dessa forma, o universal poder atrativo da arquitetura não pode residir, apenas, nesse nível de entendimento conceitual, pois ele é coisa para poucos. Há de existir outra fundamentação, de maior amplitude, envolvendo algo que seja comum à essência de todos os seres humanos.

Seguindo nessa direção, assumimos uma linha naturalista de pensamento na qual encontraremos o caminho para a demonstração da aceitabilidade da tese aqui defendida. O matemático e biólogo polonês Jacob Bronowsky é quem nos dá o rumo procurado ao afirmar, em sua magnífica obra intitulada “A escalada do homem”, que “...a natureza – ou seja, a evolução biológica - não moldou o homem de modo que se ajuste a nenhum ambiente em particular. Pelo contrário ...ele vem ao mundo trazendo um equipamento de sobrevivência muito rudimentar.” Diferentemente de outros animais, sua pele não está preparada para enfrentar, desprovida de proteção, o variado meio ambiente de todos os lugares do globo terrestre por onde sua vida se desenvolve. Ao lado da fragilidade física, entretanto, a espécie humana possui o dom do raciocínio, do intelecto. E é com esse atributo que ela, espécie humana, também movida pelo instinto e necessidade de sobrevivência, desenvolveu vestimentas, e, sobretudo, artefatos arquitetônicos que a protegesse da morte.

Nas sociedades primitivas a construção do abrigo era uma habilidade dominada por todos. Com o passar do tempo e a evolução dos agrupamentos humanos, a arquitetura especializou-se como tarefa exclusiva daqueles que conhecem seu campo disciplinar. Apesar disso, contudo, o generalizado vínculo do homem com a arquitetura não morreu, pois o poder instintivo que ensejou o surgimento desta jamais foi apagado do inconsciente coletivo.

Por mais que, atualmente, a produção da arquitetura esteja sob responsabilidade restrita de seus profissionais, persiste indispensável à sobrevivência a existência de abrigos, e sua busca é necessidade básica da raça humana. Diante do exposto, penso eu, explica-se o fato de a arquitetura ser objeto da preocupação de todos, capaz de suscitar discussões até em um campo de futebol, como aqui exemplifiquei.

É bem verdade que o raciocínio ora desenvolvido possui cunho filosófico, e, como tal, dele tanto é legítimo concordar quanto discordar. O saudoso Professor Arquiteto Elvan Silva, parafraseando o filósofo Louis Althusser, nos ensina que determinadas proposições arquitetônicas “...são afirmações não-evidentes por si próprias, insuscetíveis de demonstração ou verificação objetiva, mas capazes de ser qualificadas como corretas (ou justas), na medida em que podem produzir a persuasão de sua própria correção a partir da consistência dos argumentos envolvidos.”

Portanto senhoras e senhores, independentemente de havê-los, com meu breve discurso, convencido de que estamos, todos, profundamente envolvidos com a arquitetura, creio ser indubitável o significativo papel que ela desempenha na vida humana.

Assim sendo, meus caros colandos, estejam conscientes da importância da profissão que, a partir de agora, exercerão, e tenham muito orgulho do que escolheram como ofício. Espero, também, que construam suas carreiras com responsabilidade e, sobretudo, dignidade.

O melhor que posso desejá-los, meus novos colegas, é que nossa profissão proporcione a vocês alegrias na mesma intensidade das que me foram proporcionadas ao longo de nossa convivência acadêmica, e, em especial, desta que me é proporcionada neste momento.

JMCB - março de 2010

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