terça-feira, 11 de setembro de 2007

"Nada provém do nada", de Edson Mahfuz

Alunos, abaixo, texto de leitura obrigatória!!!

Nada provém do nada

A produção da arquitetura vista como transformação de conhecimento


Edson da Cunha Mahfuz[R1]

“O conceito de evolução
não se aplica à
arquitetura, porque em
nossa profissão só existe
metamorfose.”
Alberto Sartoris

“Para saber escrever
é preciso saber ler.”
Jorge Luis Borges

Neste momento em que cresce de importância a discussão sobre os valores essenciais da arquitetura moderna, tal como a entendemos e praticamos no Brasil, é talvez oportuno discutir um assunto que diz respeito a todo aquele que, como arquiteto, ou em outras capacidades, se dedique a criar, ou qualificar, espaços nos quais atividades humanas possam ser exercidas. Esse assunto, tão importante, refere-se às maneiras pelas quais aqueles espaços, ou objetos que os qualificam, ganham suas formas.

No Brasil, a maioria dos arquitetos saídos das universidades depois da Segunda Guerra Mundial tiveram uma formação arquitetônica estruturada nos moldes do sistema estabelecido pela Bauhaus. Essa escola alemã, um dos vários desdobramentos que se seguiram à reação ao ecletismo e revivalismo que caracterizaram a segunda metade do século XIX em toda a Europa, tinha duas entre suas principais características que influenciaram tremendamente o ensino e a prática da arquitetura no Brasil até o passado recente, e ainda se fazem sentir com muita intensidade. A primeira delas é o desencorajamento ao estudo da história da arquitetura: a maior evidência disso é a ausência de cursos de história da arquitetura e de análise de precedentes no currículo da Bauhaus. No Brasil, isso se refletiu na pequena carga horária dedicada a essas duas disciplinas nas universidades e na limitada cultura arquitetônica apresentada pela grande maioria dos arquitetos brasileiros atualmente; quando muito, conhece-se superficialmente os “mestres” do modernismo.

A segunda característica herdada da Bauhaus, estreitamente ligada à primeira, é a noção romântica de que o arquiteto pode e deve criar sempre obras originais, sendo condição sine qua non [R2] para isso o afastamento de quaisquer influências históricas. Esse “mito da originalidade” sugere que o arquiteto cria num vácuo histórico e cultural regulado por sua intuição e “genialidade”, chega sempre a soluções originais, cuja forma deriva do programa e da estrutura.

No entanto, todo arquiteto que tenha a capacidade de entender o processo através do qual ele realiza seu próprio trabalho sabe que isso não é verdade. Arquitetura é muito mais do que uma resposta original a problemas programáticos e estruturais. Neste ensaio se tentará apresentar uma visão um tanto diferente do processo de criação de formas arquitetônicas. O argumento de fundo do texto que segue está resumido no título dado a este artigo, ou seja, de que a produção arquitetônica consista, em grande parte, na transformação e adaptação do conhecimento existente à luz de circunstâncias sempre variáveis.

Todo projeto se fundamenta na premissa inicial de que existe uma atividade humana para a qual um espaço, ou, mais genericamente, um artefato, precisa ser criado a fim de possibilitar aquela atividade. Mesmo se nos concentrarmos e uma relação tão limitada quanto a que se supõe existir entre uma atividade e o artefato que possibilita o seu desempenho, iremos nos defrontar com um vasto número de formas possíveis e igualmente satisfatórias, ao menos de um ponto de vista puramente quantitativo. Isso acontece porque nenhuma função pode fazer mais do que sugerir uma forma específica, não podendo nunca determina-la. Logo, para escolher uma entre tantas possibilidades, o arquiteto necessitará ir além do propósito imediato que exige a criação de novos espaços, passando a considerar como de igual importância as outras dimensões de arquitetura, tais como a dimensão cultural, a social e a individual.

A atividade de criação exercida por arquitetos e designers, não partindo de uma tabula rasa, nem da consideração exclusiva de aspectos estruturais e programáticos, pode ser definida como uma atividade que se baseia em grande parte na interpretação e adaptação de precedentes. É claro que limitar o trabalho do arquiteto exclusivamente ao uso de precedentes seria uma simplificação grosseira da complexidade própria da arquitetura, mas, como se verá a seguir, o uso de precedentes cumpre um papel importantíssimo na área da composição arquitetônica.

Analogia é o instrumento principal usado para a interpretação e adaptação de precedentes em arquitetura. “Analogias não só existem dentro da disciplina chamada arquitetura, mas são também a essência do seu significado”[R3] . Analogia é, entre outras definições, uma correspondência entre duas coisas ou situações. Outra definição útil é a que se refere à analogia como sendo um processo de raciocínio a partir de casos paralelos. É necessário enfatizar que uma analogia não implica identidade total, mas sim similitude entre os elementos constituintes de dois objetos ou situações que sejam comparadas. Essa similitude não se refere somente a analogias formais, mas também a propriedade, isto é, leis e princípios de formação, comuns aos dois objetos ou situações.

É através de um processo analógico que, em arquitetura, se cria o novo a partir do existente. O uso arquitetônico de analogias [R4] tem dois propósitos: o primeiro é o de empregar o conhecimento existente, na forma de edificações e objetos, como ponto de partida para a criação de novos artefatos; o segundo é o de conferir significado preciso a um edifício ou objeto através do estabelecimento de relações formais entre o novo e o existente.

Formas arquitetônicas são geradas de quatro maneiras: pelos métodos inovativo, normativo, tipológico, e mimético. O ponto comum entre eles é o uso que todos fazem de analogias como instrumento básico de geração formal. Um aspecto muito importante do uso de analogias em arquitetura é que o objetivo ou situação com o qual se traça uma analogia pode ser arquitetônico ou não-arquitetônico, e a analogia traçada pode ser positiva, isto é, baseada nas similitudes existentes, ou negativas, baseada nas diferenças entre os objetos ou na inversão de uma forma ou método estabelecidos.

Método inovativo

É o método pelo qual se tenta resolver um problema sem precedentes, ou um problema comum de maneira diferente. As origens desse método se encontram nos primeiros construtores, que, por um processo de tentativa e erro, experimentavam os materiais disponíveis até encontrarem uma maneira satisfatória de garantir proteção contra os elementos, e de dar uma forma espacial a uma determinada cultura.

Uma das maneiras de ilustrar o que pode ser o método inovativo é por referência ao conceito de bricolage, de Claude Lévi-Strauss [R5] . O bricoleur é por ele definido através de uma comparação com o engenheiro. Enquanto este permanece dentro de um problema na busca de solução, o bricoleur sai dele e o resultado disso é o que os artefatos por ele produzidos são geralmente inesperados e inovativos.

Uma característica básica de método inovativo é que por ele se cria algo que não existia anteriormente, pelo menos no campo da arquitetura. Devido ao número enorme de artefatos arquitetônicos produzidos no mundo ao longo dos séculos, é muito difícil para um arquiteto ser original, tanto em termos da configuração total de uma edificação, como da maneira que suas partes principais são organizadas. Por essa razão, o método inovativo está ligado principalmente á criação de detalhes, ou seja, dos elementos menores que conferem um caráter específico a uma edificação ou espaço urbano, tais como pórticos, transições, aberturas, colunas etc. O detalhe, visto dessa maneira e não como detalhe construtivo, é praticamente a única área em que um arquiteto ainda pode ser original.

A etimologia de um termo sempre nos possibilita definir melhor os objetos e situações a que se refere. O verbo inovar significa tornar novo; introduzir novidade em. Buscando-se a raiz latina do verbo inovar, que é inovare, obtém-se um significado mais preciso, em que inovar tem o sentido de modificar. Arquitetonicamente, isso tem duas implicações: o reconhecimento da existência de um corpo de conhecimento sobre o qual essas inovações/modificações são exercidas; a criação de elementos que quebram a continuidade do precedente e se constituem numa novidade autêntica. Essas situações, embora raras, acontecem quando uma solução inovadora e original é criada em resposta a uma nova situação que pode exigir o emprego de um material novo ou a criação de formas para edifícios que se destinem a abrigar atividades inteiramente novas. Um bom exemplo disso é o Edifício Larkin, projetado por Frank Lloyd Wright.

No sentido anteriormente referido, inovação também é sinônimo de invenção, que se entende menos como a criação de algo em um vácuo (eureca!) do que como o poder de conceber novas relações e do fazer algo que diverge, ainda que em grau reduzido, da prática e doutrina estabelecidas. Embora a possibilidade de obter urna criação verdadeiramente original não deva nunca ser descontada, o método inovativo ajuda-nos a criar formas que diferem das existentes principalmente devido ao seu uso de analogias. Duas são as maneiras pelas quais isso ocorre: por meio de um cruzamento de contextos, isto é, buscando soluções fora do campo da arquitetura com analogias positivas traçadas entre os dois contextos, o arquitetônico e o não-arquitetônico [R6] ; por meio de uma inversão do procedimento estabelecido para resolver um determinado problema arquitetônico (analogia negativa).

No primeiro caso, cruzamento de contextos, o método inovativo oferece três alternativas, cada uma baseada em um tipo de analogia: 1. analogias visuais: com a aparência de formas humanas e naturais; com artefatos não-arquitetônicos; 2. analogias estruturais: com a organização do corpo humano; com o funcionamento do mundo natural, como por exemplo, sisternas naturais que se assemelham às colméias; com a organização de um programa – na arquitetura funcionalista ortodoxa, a “forma segue a função”; 3. analogias filosóficas com princípios de outras disciplinas como foi o caso da engenharias, no início deste século, e da lingüística, mais recentemente.

No segundo caso, o método inovativo, ao traçar analogias negativas, subverte maneiras estabelecidas de resolver certos problemas formais, ou toma caminhos improváveis para alcançar soluções “inéditas”. Aqui podemos nos referir a Le Corbusier, mais precisamente nos seus projetos domésticos realizados no período entre as duas guerras mundiais, em que ele invertia o padrão de movimento comum à arquitetura tradicional. Enquanto na tradição de casas de campo inglesas e francesas o prédio atuava geralmente como um portal que dava acesso à natureza, e dentro do qual o sentido principal de movimento das pessoas era o horizontal, em uma casa como a Ville Savoie o movimento das pessoas ocorre na vertical, em direção ao terraço jardim, que é o destino final de onde a natureza só pode ser experimentada visualmente, ao contrário do que aconteceria nas casas de campo pré-modernas, onde a natureza pode ser desfrutada integralmente.

Método normativo

No método normativo, as formas arquitetônicas são criadas com o auxílio de normas estéticas, isto é, princípios reguladores. Embora existam muitas normas estéticas em arquitetura, há três tipos que se destacam, e sua importância para a arquitetura é confirmada pelo seu uso repetido ao brigo da história.

O primeiro tipo de norma estética é o sistema de coordenadas que consiste em linhas que se cruzam, com direções e dimensões constantes. O sistema de coordenadas mais usado é aquele em que as linhas se cruzam a 90 graus, chamado de malha ou grelha, e pode ser bidimensional ou tridimensional. A malha bidimensional é basicamente aplicada à planta, como um elemento latente, um sistema de orientação sem presença física, que estabelece uma hierarquia bem clara entre espaços principais, circulação e espaços auxiliares. A malha tridimensional é assim chamada porque tem uma realidade física própria, sendo, por assim dizer, um esqueleto estrutural. Ao contrário da malha bidimensional, a malha tridimensional não se confunde com os espaços, mas coexiste com eles num estado de superposição e até, às vezes, de tensão. Esse tipo de malha não é uma invenção do século XX e pode ser encontrado até em templos egípcios do século II a.C., mas foi só neste século que se tornou um meio de expressão nas mãos de Le Corbusier e seus seguidores, em cujos trabalhos malha e volumes mantêm sua individualidade, coexistindo sem fundir-se.

O segundo tipo de norma estética é composto pelos sistemas proporcionais, usados para criar um senso de ordem entre os elementos de uma composição, havendo também razões filosóficas e metafísicas para seu uso. Como exemplo de sistemas proporcionais, podendo-se citar a Seção Áura, as Ordens Clássicas, o Modulor, o Ken etc.

O terceiro tipo de normas estéticas consiste no uso de formas geométricas elementares como elemento de definição e controle das partes principais de uma edificação. Essas formas são a esfera, o cubo, a pirâmide, o cilindro e o paralelepípedo, além das figuras geométricas que gerem esses volumes.

Normas estéticas são empregadas em arquitetura por duas razões. A primeira é o desejo de criar um senso de ordem entre as partes de uma edificação, o que pode ser obtido com o estabelecimento de relações de analogia entre as partes, ou por sua subordinação a algum sistema formal abrangente. A segunda razão para o uso de normas estéticas é o fato de conferirem ao arquiteto maior autoridade e segurança para a tomada de decisões formais e dimensionais.

Um significado específico pode der atribuído a uma edificação composta com o auxílio de normas e estéticas por associação com o significado histórico inerente ao sistema empregado; ou através das relações entre o sistema e sua violação dentro do próprio objeto. Uma condição necessária para que algum significado histórico seja possível é que a norma estética seja um fato de domínio da chamada memória coletiva. Isso já não é necessário para o segundo tipo de significado, que pode existir mesmo quando o objeto é observado isoladamente.

Método tipológico

“Nada pode jamais renascer. Mas por outro lado, nada desaparece completamente. E qualquer coisa que um dia existiu sempre reaparece em uma nova forma.” [R7] “... a arte de edificar nasce de um germe pré-existente; nada vem do nada... o tipo é uma espécie de germe em torno do qual, e de acordo com ele, são ordenadas todas as variações de que um objeto é suscetível.” [R8]

A primeira citação se refere, em termos bem claros, ao fato de que estamos sempre aproveitando o conhecimento existente para gerar novo conhecimento, isto é, novas edificações. A segunda já começa a nos explicar como isso acontece, referindo-se a um método de projeto que se baseia em tipos. E o que é um tipo? A definição canônica, universalmente aceita, nos diz que: “A palavra tipo representa não a imagem de uma coisa a ser copiada ou perfeitamente imitada, mas a idéia de um elemento que deva servir como regra para o modelo... O modelo, entendido em termos da execução prática da arquitetura, é um objeto que deve ser repetido como ele é; o tipo, ao contrário, é um princípio que pode reger a criação de vários objetos totalmente diferentes. No modelo, tudo é preciso e dado. No tipo, tudo é vago”[R9] .

O tipo, então, é algo que não pode ser mais reduzido do que já é. O tipo deve ser entendido como a estrutura interior de uma forma, ou um princípio que contém a possibilidade de variação formal infinita, e até de sua própria modificação estrutural. Para ilustrar a definição de tipo, pode-se pensar no tipo “casa-pátio”, que, grosso modo, seria imaginado como um volume de qualquer forma, com um vazio em seu interior, também de qualquer forma. O importante aqui é essa relação entre o volume e o vazio que ele contém, a qual pode tomar qualquer forma quando materializada.

O tipo é o princípio estrutural da arquitetura, não podendo ser confundido com uma forma passível de descrição detalhada[R10] . Todo edifício pode ser reduzido conceitualmente a um tipo, ou seja, é possível abstrair-se a composição de uma edificação até o ponto em que se vêem apenas as relações existentes entre as partes, deixando-se de lado as partes propriamente ditas.
Projetar pelo método tipológico é usar tipos como parte do processo de projetos de novos artefatos arquitetônicos. O uso de um determinado tipo é geralmente justificado pela existência de alguma afinidade estrutural ou, em outras palavras, uma analogia, entre um precedente e o problema que temos na prancheta.

Tipos podem ser empregados de duas maneiras, uma histórica, outra a-histórica. O propósito do uso histórico de tipos seria conferir um significado a uma forma por meio de associação mental com um objeto/edifício já existente e conhecido. A esse respeito, Demetri Porphyrios diz: “A forma arquitetônica torna-se significativa somente quando é codificada tipologicamente, porque o tipo, com suas bases nos hábitos e convenções sociais, age como um instrumento classificatório que torna legível o mundo visível”[R11] .

Nesse primeiro uso, o tipo é tanto um ponto de partida para o projeto como um instrumento de significação. Como se apóia na riqueza associativa de tipos que são socialmente legitimados, esse uso de tipos poderia também ser chamado de iconográfico. O emprego do tipo casa-pátio em várias escalas através da história nos oferece exemplos claros desse modo de utilizar tipos em composição.

Ao ser usado historicamente, o tipo é, por assim dizer, absorvido no processo de composição, e o significado do objeto resultante não é aquele do tipo utilizado, mas resulta da própria operação de composição e do novo uso a que o tipo é sujeito. O uso a-histórico de tipos implica: a suspensão do tempo, já que o tipo é dissociado de sua condição histórica; a transposição de lugar – o tipo se desvincula de sua cultura original; a dissolução de escala, pois um tipo extraído de uma casa pode gerar um palácio, e vice-versa.

Uma conseqüência importante do emprego do método tipológico é a implicação de que as formas não são eternamente ligadas às funções as quais foram projetadas. Pelo contrário, formas arquitetônicas têm o potencial de conter, e de fato contêm, uma multiplicidade de funções através do tempo. Mas talvez o benefício mais importante que se pode obter do entendimento do conceito de tipo é que nos possibilita fazer uso de toda a história da arquitetura como fonte de pesquisa e inspiração, já que ao estudar essa história desde um ponto de vista tipológico, o que o arquiteto extrai dela são princípios, não formas literais. Projetar com o auxílio da história não leva necessariamente à criação de pastiches.

Método mimético

É o método pelo qual novos objetos e edificações são gerados com base na imitação de modelos existentes. O processo se inicia com a escolha do modelo a ser imitado. Esse modelo e uma forma familiar testada exaustivamente e de larga aceitação. A escolha desse modelo implica um juízo de valor, um reconhecimento de que certa obra de arquitetura é a melhor solução para determinado problema, e que, não podendo ser aperfeiçoada, deve ser imitada.

O termo mimético vem do grego mimesis, que quer dizer imitação. A teoria da imitação é um produto da Grécia clássica, ou seja, dos séculos ocorridos antes de Cristo. Desde esse tempo, quatro conceitos de imitação foram desenvolvidos. Entre eles, há dois que nos interessam diretamente: o conceito platônico, segundo o qual imitação é uma cópia fiel da aparência das coisas (esse é o sentido hoje atribuído ao termo, na maioria dos casos); o conceito aristotélico, que não define a imitação como cópia fiel, mas como livre interpretação da essência da realidade por parte do artista.

O método mimético imita modelos escolhidos no sentido dado ao termo por Aristóteles, ou seja, interpretando-os e adaptando-os. O fato de que modelos são transpostos no tempo e no espaço significa que há sempre diferenças entre os contextos envolvidos, e isso por si só já impossibilita a existência de cópias perfeitas. De fato, o método de projeto que se baseia na imitação de modelos inclui entre suas características um razoável grau de invenção, cujo fim é adaptar o modelo às novas circunstâncias. Um exemplo muito claro disso é a arquitetura do Renascimento, que, apesar de derivar da arquitetura romana do período clássico, não pode nunca ser com esta confundida.

O método mimético, então, gera nova arquitetura com o auxílio de analogias visuais com a existente. Essas analogias podem ser classificadas em três grupos: revivalismo, ou revivificação estilística; ecletismo estilístico; analogia estilística.

O revivalismo ou revivificação estilística consiste na imitação de edifícios de outro tempo ou lugar, em sua aparência geral, ou partes principais. O ecletismo estilístico consiste na imitação não de edifícios inteiros, mas de partes, ou fragmentos, de edifícios existentes ou mantidos, de alguma forma, para a posteridade. As características básicas dessa variedade de mimetismo são a justaposição de fragmentos de várias procedências e a possibilidade de se criar novos edifícios, através de permutações compositivas.

Na analogia estilística, ao contrário dos dois primeiros grupos, onde se fala da imitação de um edifício inteiro ou de várias partes tiradas de edifícios diversos, o que acontece é a escolha de um número reduzido de partes, tomadas cuidadosamente de modelos escolhidos, com o fim de conferir significados precisos a novos artefatos arquitetônicos. A chave desse procedimento não é a transposição literal de um motivo de um contexto para outro, mas uma "reinvenção" do motivo, de maneira a formar uma nova linguagem, que, não obstante, ainda carrega o original como uma sombra.

Embora os quatro métodos de geração formal mais comumente usados em arquitetura tenham sido aqui discutidos separadamente, para clareza do texto, as evidências mostram que, em geral, elas aparecem em combinação durante o processo de composição em arquitetura. Nem sempre todos se empregam ao mesmo tempo, mas raras as obras de arquitetura de alguma importância geradas exclusivamente por um desses métodos. O mais provável é que pelo menos dois ou três estejam presentes no produto final, e que se relacionem hierarquicamente: um método é usado para gerar as partes principais, e os outros para as demais.

Ao aceitar se a idéia de que a arquitetura e uma síntese formal de vários fatores internos e externos ao projeto, relacionados entre si em vários níveis, fica claro que nenhum sistema compositivo ou de geração formal é capaz de sintetizar todos os fatores e níveis envolvidos em um projeto. Assim, os quatro métodos de geração formal apresentados ao longo deste artigo devem ser vistos como aspectos complementares do fazer arquitetônico, nunca como sistemas independentes, ou mutuamente exclusivos. Dois exemplos serão suficientes para demonstrar isso.

Ao projetar a Primeira Igreja Unitária, em Oak Park, Frank Lloyd Wright usou o método inovativo para resolver o problema do uso de um material novo, o concreto, que foi, nesse caso, deixado aparente pela primeira vez em um edifício não-industrial; o método mimético aparece na repetição da mesma solução para a circulação vertical (torres nos quatro cantos da planta) já empregada por Wright no Edifício Larkin; o uso do método tipológico é evidente na escolha de um tipo bastante usado em outros edifícios religiosos, ou seja, um volume central de pé direito múltiplo circundado por balcões; por último encontra-se o método normativo na forma de uma malha bidimensional que controla a planta da igreja, definindo seus espaços principais e secundários.

Uma análise da Villa Stein, projetada por Le Corbusier, mostra que o famoso arquiteto empregou o método tipológico, ao dispor as acomodações de maneira similar àquelas dos palacetes renascentistas, ou seja, com as áreas de estar colocadas no primeiro andar, o chamado piano nobile. O método normativo está presente na forma cúbica da saca e na malha estrutural tridimensional que é visível por toda ela. Le Corbusier também fez uso do método mimético empregando uma série de elementos usados em outros projetos seus, como escadas semicirculares, volumes curvos que definem espaços auxiliares, e paredes onduladas que modulam a circulação interna. Por fim, localizamos a utilização do método inovativo na inversão do esquema tradicional da casa de campo, já discutido aqui em outra parte.

Para terminar, seria oportuno retornar às duas citações que abrem este ensaio. A primeira delas, do arquiteto racionalista italiano Alberto Sartoris, ilustra a intenção central deste artigo, que é a de caracterizar a arquitetura como uma práxis baseada na transformação de conhecimento. A segunda citação, em que Borges afirma que “para saber escrever é preciso saber ler”, foi dirigida à literatura, mas é também válida para todas as atividades essencialmente criativas, e expande a idéia contida na primeira citação, ao sugerir que o uso da história depende de um ato crítico, seletivo e transformador, realizado pelo arquiteto que a emprega como matéria-prima.

Apesar de os grupos vinculados à Bauhaus propagarem a doutrina da originalidade, os fatos mostram uma história bem diferente. Qualquer tradição arquitetônica desenvolve seus próprios temas, seus motivos e formas característicos, mas isso se dá sempre em relação com o existente. Os mais profundos arquitetos do século XX souberam usar a história da arquitetura de tal maneira, que ela se apresenta aos nossos olhos totalmente transformada. Já se disse até que a história da arquitetura muda a cada vez em que um arquiteto de talento faz uso dela.

Ao contrário do que diziam os mitógrafos da arquitetura moderna, todos os grandes arquitetos deste século recorreram à história como referencial. Le Corbusier, um dos maiores arquitetos da era moderna, e um dos supostos “criadores originais”, deixou-nos ampla evidência disso em prédios como a sede do Parlamento em Chandigarh. Comparando-se sua planta com a do Museu Altes, em Berlim, projetado em 1823, por Karl Friederich Schinkel [R12] , uma relação tipológica entre as duas pode ser detectada, pois ambos apresentam a mesma seqüência básica, que começa no pórtico de entrada e prossegue por um caminho processional até um espaço central coberto por um domo. Outra semelhança é a disposição de atividades secundárias na periferia dos dois edifícios.

Ainda na planta, o vasto número de colunas existentes no interior do Parlamento é reminiscente de certas salas hipóstilas[R13] encontradas nos templos egípcios. Vistas dos dois projetos mostram que o mesmo esquema, ou seja, um domo sobre um volume primário, se faz presente em ambos, embora tratado de maneira diferente. A relação entre os dois projetos se dá a nível conceitual, e em nenhuma parte isso é mais evidente do que nos pórticos existentes nas fachadas principais dos dois edifícios. Enquanto o pórtico do museu é clássico, o de Le Corbusier faz muitas coisas no mesmo tempo: cria uma ordem quase clássica, pela disposição e proporção dos suportes verticais, mas formalmente difere totalmente da solução empregada por Schinkel; a parte superior do pórtico, que ocupa o lugar da entablatura clássica, dá sombra ao pórtico e resolve o problema do escoamento das águas pluviais (sendo aquela uma região onde chove muito durante o inverno), funcionando como uma calha gigantesca; ao criar uma área de sombra à entrada do edifício, o pórtico se apresenta como uma continuação da tradição indiana, segundo a qual os excessos do clima local são controlados por meio de verandahs.

Com esse exemplo, espero ter deixado claro que, parafraseando Borges, para escrever bem, não é suficiente ler, mas saber ler. Isso se aplica perfeitamente à produção arquitetônica. Em arquitetura é preciso saber abstrair, chegar à essência do existente e, principalmente, saber julgar sua relevância para o caso de que nos ocupamos no momento. Uma arquitetura autêntica só surge quando um arquiteto entra na história em vários níveis ao mesmo tempo, extraindo dela princípios básicos e transformando-os, ou mesmo “reinventando-os”, por assim dizer, para que eles possam ajudá-lo a resolver problemas e necessidades do momento. Como foi visto no último exemplo, a história só é bem usada quando não restam trações literais do seu uso ou, em outras palavras, quando é “bem lida”.

[R1]Edson da Cunha Mahfuz, natural de Porto Alegre, RS, 1953, é arquiteto formado pela FAUFRGS em 1978, com pós-graduação na Architectural Association School, em Londres, 1980, e PhD em arquitetura na University of Pennsylvania, EUA, 1983, com a tese “An investigation into the Relationship between the Parts and the Whole in Architectural Composition”, publicada pela University Microfilms International, Michighan, 1983. Foi professor de projeto e teoria na University of Pennsylvania e é professor atualmente no Propar/FAUFGRS.

[R2]“Sem o qual não”: imprescindível, indispensável.

[R3]Aldo Rossi, “My Designs and Analogous Architecture”, em Aldo Rossi in America. 1976-79. pág. 19.

[R4]O uso de analogia a que me refiro aqui está voltado à criação de arquitetura, mas também desempenha importantíssimo papel no processo de percepção dos artefatos feitos pelo homem. Quando nos defrontamos com um objeto desconhecido, só podemos analisá-lo por meio de comparações com outros objetos conhecidos, em ternos das semelhanças e diferenças existentes entre eles.

[R5]Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind. págs. 16-30.

[R6]Isso corresponde à descrição feita por Arthur Koestler do “ato de criação” como sendo uma “associação de dois referenciais previamente não relacionados de nenhuma maneira”. Em Charles Hampden-Turner, Maps of The Mind. pág. 100.

[R7]Alvar Aalto, “Painters and Masons”, em Jouisimes. 1921, também citado em Demetri Porphyrios. Sources of Modern Ecletism. pág. 25.

[R8]Antoine C. Quatremére de Quincy. Dictionneire Historique d’Architecture. vol. II. pág. 629. 1832.

[R9]Obra citada. pág. 630

[R10]Para entender que o tipo é um princípio e não uma forma, pode-se pensar na distinção entre “colher” a “uma colher”. O termo colher refere-se a uma forma genérica composta de duas partes: cabo e receptáculo côncavo. Por outro lado, uma colher implica um objeto específico que tem um tamanho, uma forma e é feito de algum material. Com base na idéia genérica de colher, pode-se construir colheres bastante diferentes entre si, mas todas carregando o mesmo tipo

[R11]Porphyrios, obra citada. pág. 25.

[R12]Esse era um edifício bem conhecido por Le Corbusier, pois além de ter vivido em Berlim, ele trabalhou para Peter Behrens juntamente com Mies na der Rohe, dois arquitetos que admiravam muito o trabalho de Schinkel e por este foram influenciados.

[R13]Hipóstilo: Diz-se de uma sala cujo teto é sustentado por colunas.


Agradecemos à Regina Almeida, que digitou, a partir da Revista Projeto 69, o texto do Prof. Mahfuz.

4 comentários:

Anônimo disse...

Professor o livro que me referi numa remota aula sua, sobre o conceito do belo é: "O sentido da arte" de Herbert Read, em que diz "(..) o homem reage à forma, superfície e massa do que se lhe apresenta aos sentidos; a beleza seria portanto, o SENTIMENTo de relações agradáveis."

Mas enfim, seria belo, um guarda corpo e a base em concreto,e a corbetura de telhas com detalhes em madeira?
Que tipos de telhas?

Gelly disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Edson Mahfuz disse...

prezado bassalo,

fico contente de ver o meu texto publicado por ti como material de apoio. pena que as imagens não foram incluídas. se quiseres posso enviar o link para que os alunos baixem uma versão completa com as ilustrações.

abraço.

edson mahfuz

luisa triste disse...

moço vou ter uma prova do seu livro 😭😭😭😭😭😭